terça-feira, março 05, 2002

Muitos de nossos distúrbios atuais provêm de conflitos da infância. Freud explica. Não sei se todos os problemas vêm de tão longa data, mas pelo menos alguns dos meus só agora tenho capacidade de entender. Sempre ouço pessoas revelando certos temores incompreensivelmente infantis. Há quem tenha medo de palhaços, de cães, de escuro, até de trovões. Eu, dentro desse contexto incomum, sempre tive verdadeira aversão a fotos antigas, daquelas em preto e branco, principalmente aquelas que exibem pessoas sorrindo ou grupos de pessoas em momentos de celebração. Na época de menino, não entendia, só sentia uma incontrolável angústia nessas situações e me afastava. Não posso dizer que hoje a sensação é menos desagradável, mas agora acredito, no entanto, que tenha uma explicação para o fato.

Essas fotos simbolizam a cruel e real certeza da efemeridade humana. Aquelas pessoas felizes das fotos não existem mais, aqueles instantes retratados nas imagens talvez tenham sido importantes, mas quem hoje os vê, apenas tenta, por curiosidade, deduzir suas razões. Lembro que me sentia mal cada vez que minha avó, ao mostrar-me as fotos, dizia não lembrar do nome da maioria daquelas pessoas que, provavelmente, fizeram parte de algum momento de sua vida.

Assombra-me até hoje a recordação de algumas fotos em especial, repetidas diversas vezes nas sessões nostálgicas de minha avó. Eram de um rapaz que, em uma das fotos, sorridente e cercado de amigos, segurava um diploma em suas mãos. Aquilo representava um momento de conquista, o ponto de partida para a realização de sonhos, mas para mim era terrível imaginar que toda uma vida passava ali, em segundos, diante dos meus olhos.

O que mais assusta é que a imagem do tal rapaz foi capturada em outros instantes tão comuns: no barzinho com colegas, em seu aniversário, jogando futebol. Coisas que todos fazemos. Isso só me traz a certeza de que as coisas evoluem, mas a vida não muda, são apenas roupas com outros desenhos em corpos semelhantes, líquidos iguais em copos diferentes, frases ou letras distintas que mesmo com o passar dos anos ainda dizem as mesmas coisas.

Hoje em dia, pensar nisso não mais me tira o sono ou traz revolta diante das leis divinas, mas, após minha partida, se possível, ainda não sei o que mais me incomodaria saber: ser "honrado" com a adoção de meu nome por uma praça ou instituição de ensino, tornando-me mais um ilustre, bucolicamente desconhecido, ou ter minha imagem, registrada num papel, esquecida no fundo de um armário.




A ausência de cores não apaga o rastro da lágrima
ou o sorriso por detrás do traço apagado
de um instante gravado uma só vez
Cada imagem conta um pouco do todo
na pose espectral do retrato antigo
que vence as dobras do papel que o tempo fez

(Harry)

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