Era uma época de descobertas. Naquele tempo, de inúmeros caminhos, todos levando a portas instigantemente abertas, aquela pessoa talvez tenha tido grande importância na formação de características pessoais que hoje são dominantes em minha personalidade. Isso, é claro, combinado a outros eventos teoricamente pequenos, como o encontro do livro de poesias perdido em meio a uma pilha de papéis de meu pai. Livro que trazia palavras que pareciam ter o incrível poder de descrevê-la em detalhes que só eu conseguia ver. E assim passava minhas noites: lendo uma a uma aquelas poesias para que pudesse comparar todas as estrofes aos sorrisos que durante o dia ela me ofertasse.
Não conseguia lembrar seu nome, mas sempre me perguntei onde estaria, o que estaria fazendo agora...Aqueles momentos nao se apagaram. Parecem ter se colocado naquele lugar chamado de "Memórias Permanentes", dada a riqueza de cores e sons de minhas lembranças.
Outro dia, estava em casa de uma tia, que nao visitava há anos. Tia essa que ainda está no velho bairro, onde antigamente todos da familia moravam. tempos bons...Enfim...as crianças brincavam em frente a casa (incrível como as familias parecem crescer de tal maneira que se torna difícil acompanhar. São filhos de primos, filhos dos filhos desses primos...tantas novas pessoas, tantos nomes...). Eram muitas e faziam um barulho ensurdecedor. Dentro da casa, contrastando com a confusão de fora, havia uma menina que brincava silenciosamente com suas bonecas no sofá. Eu a observava de longe. Havia algo estranhamente familiar em seu jeito, uma leveza de movimentos,um sorriso pequeno que aprofundava a pele de sua face esquerda. Ela levantou-se de repente e seus cabelos cairam sobre o rosto, ela entao fechou a mão como uma concha e jogou-os para trás. Foi incrível! Assustei-me. Era mais que um déjà vu, era como um espectro do meu passado...
Ia questionar minha tia, quando adentrou a casa uma elegante e jovem senhora, acompanhada de um homem alto, de aparência austera. Eram os pais da menina. Imediatamente busquei o rosto daquela senhora e, quando nossos olhos se encontraram, tive a certeza: era ela...Aproximei-me e fui apresentado ao casal (Finalmente lembrara seu nome!). Conversamos animadamente sobre vários assuntos, todos juntos alí naquela sala. Não mencionei que a conhecia e ela, embora fosse simpática durante todo o tempo, não demonstrava lembrar de mim. Após nos despedirmos e ao vê-la partir, fiquei feliz. Pois estavam respondidos meus questionamentos; ela estava bem, era uma profissional bem sucedida e tinha uma bela familia. Isso bastava...
Alguns minutos depois, preparáva-me para ir embora também, quando ela voltou sozinha e, meio sem jeito, pediu a minha tia que buscasse alguma coisa que sua filha havia esquecido no quarto de minha prima. Ao ver minha tia afastando-se, ela se aproximou e, me olhando nos olhos, disse baixinho: " ainda sonho com aquele caminho, de casa pra escola, de mãos dadas com voce..." . Nao tive tempo de dizer nada, pois minha tia voltara e ela logo se foi. Dessa vez, ao vê-la partir, foi diferente. Senti um aperto no peito, uma angústia...
O destino é assim: nos mostra lá na frente o que, sem sabermos, deixamos pra trás. Quem sabe uma daquelas portas que não escolhemos nos levasse a outros caminhos, mais longos do que o da escola e nos desse o tempo que não tivemos...
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar ?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.
(Cecília Meireles)
Leia também:
Retrato Antigo
Amizade
Adeus